Condições Necessárias para o Sucesso do Novo Marco Legal do Saneamento

Condições Necessárias para o Sucesso do Novo Marco Legal do Saneamento

Novo Marco Legal do Saneamento

Por Luciano Afonso Borges (*)

Segundo a Constituição brasileira, o saneamento básico compete às Prefeituras, que em geral não dispõem de adequada estrutura de gestão, nem de recursos financeiros suficientes. Até pouco tempo atrás, elas também não podiam suprir essa carência recorrendo à iniciativa privada, que desempenhava um papel muito modesto nesse sistema, com atividade e abrangência restritas.

Essa situação foi responsável por manter o atraso do setor durante as últimas décadas, mas passou por significativa mudança há quatro anos, com a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020). A nova legislação abriu espaço para a participação do capital privado, estipulando que as empresas públicas responsáveis pelos contratos atuais precisam comprovar capacidade econômico-financeira para atingir as metas estipuladas na Lei, caso contrário podem perder a concessão do serviço.

Assim se configurou a solução para essa profunda carência, sem distinção nem privilégios entre capital público e privado. O que importa é o capital, condição necessária para se atingirem as metas traçadas pelo Novo Marco, que prevê atendimento a 99% dos brasileiros com água tratada e a 90% com coleta e tratamento de esgoto, até 2033.

Felizmente, a iniciativa privada tem sido receptiva a esse novo nicho de mercado.

O BNDES estima que os 12 leilões realizados desde 2020, em conjunto com os 10 projetos em desenvolvimento atualmente, movimentarão R$ 120 bilhões, dos quais R$ 61 bilhões já foram contratados.

A Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon) contabiliza 48 projetos em estruturação em todo o país, considerando aqueles em desenvolvimento por municípios e estados, e não apenas os que foram gestados no BNDES.

Entre o principal projeto está o da Sabesp, porém as Parcerias Público-Privadas (PPPs) da Sanepar também têm despertado a atenção dos investidores, por serem as únicas concorrências de grande porte do setor com data marcada. Os três lotes somam investimentos de R$ 2,95 bilhões e envolvem serviços de água e esgoto em 112 municípios do Oeste e Centro-Leste do Paraná.

A Abcon Sindcon estima que há cerca de 39 projetos municipais em estruturação no país, que devem trazer R$ 22,6 bilhões em aplicações e levar os serviços para 5,75 milhões de pessoas. Segundo a entidade, de 2020 a 2023 houve 30 leilões municipais com previsão de R$ 6,5 bilhões de investimentos contratados e outorgas.

Esse considerável afluxo de recursos abre uma janela de oportunidade sem precedentes, que precisa ser aproveitada e devidamente manejada para que a atratividade do negócio se mantenha e possibilite ao Brasil atingir as metas.

O interesse da iniciativa privada se sustenta pela percepção de um nicho lucrativo no futuro, quando for superada a fase inicial de despesas e investimentos mais pesados, que por enquanto predominam. Caso, por uma infelicidade, essa expectativa de retornos positivos não se concretize nos próximos anos, o capital privado com certeza abandonará esse mercado, em grave prejuízo para o desenvolvimento do setor e para o país como um todo.

Por isso, o aporte de capitais que vivenciamos no momento é condição necessária, mas não suficiente. Para que o modelo se sustente a longo prazo, é imprescindível que a transformação desse capital em distribuição de água potável e em coleta e tratamento de esgoto ocorra com qualidade na oferta do serviço, a preços adequados para o consumidor e com retornos atraentes para o investidor. Essa conjunção de fatores só será alcançável com uma gestão competente, tanto das prefeituras municipais como das Concessionárias, amparadas por uma cadeia produtiva de alto nível.

Atingir esse patamar é uma missão hercúlea, pois o país não está preparado. Carece de planejamento estratégico, que deverá transformar-se em Planos de Ação para serem executados por todos os envolvidos – administração municipal, Concessionárias e cadeia produtiva – nessa árdua tarefa de capacitação e atualização.

Formação de gestores municipais permanentes

De forma geral, os municípios, que são o Poder Concedente, deveriam estar aptos para conduzir a execução de seus planos diretores de água, esgoto, drenagem, resíduos sólidos, uso e ocupação do solo, mobilidade e viário, viabilizando uma gestão municipal planejada de governo. No entanto, é notória a carência de gestores municipais tecnicamente capacitados para atuar nas secretarias municipais de infraestrutura.

Cientes dessa realidade, algumas entidades vêm desenvolvendo ações destinadas a mitigar esses problemas.

A Confederação Nacional dos Municípios – CNM (  https://cnm.org.br )  tem produzido e disponibilizado vídeos, notícias, publicações e seminários voltadas ao aperfeiçoamento dos gestores municipais.

O estado de São Paulo, em convênios com as prefeituras, viabilizou os Planos Municipais de Saneamento Básico para os municípios que ainda não os possuíam ou que estavam desatualizados.

O Sinaenco, a APECS e a ABCE, também sensíveis a essa realidade, decidiram criar este site, o Boletim do Saneamento, onde são disponíveis informações básicas e orientações relativas a financiamentos, Planos de Saneamento, Planos Diretores, contratação de estudos e projetos, Termos de Referência, controle de perdas, legislação referente ao setor e sugestões de requisitos para propiciar contratações de qualidade.

Todas essas iniciativas são muito importantes e devem continuar, porém, a magnitude do desafio requer, como já dito, uma estratégia e um plano de ação, visando implantar uma rede de gestores municipais permanentes, devidamente capacitados e treinados para atuarem em todo o ciclo de vida dos empreendimentos − desde a viabilização, projeto e implantação, até a fase de operação e manutenção.

Para construir essa rede seria necessário um programa nacional específico, que envolvesse os governos federal, estadual e municipal, tanto no suporte financeiro para contratar os profissionais, como para formular e implantar treinamento específico, inclusive destinado à atualização periódica.

Essa capacitação técnica deve permitir que os municípios contratem estudos, projetos e obras para a implantação, ampliação e manutenção de seus sistemas, atendendo às características específicas de cada localidade, e que interajam tecnicamente com as empresas detentoras de Contratos de Concessão ou no âmbito de PPPs a serem constituídas, em diferentes modelagens de regionalização. O resultado será o uso racional e otimizado do recurso fundamental mais precioso, a água.

Trata-se de uma capacitação bastante abrangente, que irá requerer do gestor conhecimentos não só no setor de saneamento e infraestrutura nas áreas de planejamento, projeto, implantação, operação e manutenção, como também de gestão dos contratos firmados com as Concessionárias.

Daí o pressuposto de que as prefeituras mantenham em seu quadro permanente profissionais com formação em saneamento básico ou colaboradores com experiência na execução e manutenção de obras de saneamento, dependendo do porte e das características de cada município.

Quando esse não for o caso, nas prefeituras de pequeno porte os custos dos profissionais seriam compartilhados com o estado e a União e esses profissionais poderiam se responsabilizar por mais de um município.

Essa rede de gestores se constituiria em elo importante com o setor privado, não só na fase de implantação do Novo Marco do Saneamento, como também de suporte tecnológico para a administração da infraestrutura do município. O desempenho da rede poderia ser monitorado e aperfeiçoado por uma comissão constituída pelos representantes dos municípios, dos estados e da União. Seria um meio de prover a administração municipal de infraestrutura técnica de suporte local e permanente, qualificando melhor a gestão dos municípios, sobretudo daqueles de menor porte.

O papel das Concessionárias

Outros agentes fundamentais são as Concessionárias públicas e privadas, a quem compete atingir as metas do Novo Marco do Saneamento por meio da cadeia produtiva e, como já mencionado, com resultados financeiros que estimulem o capital a continuar investindo.

Em função do porte do desafio e do exíguo tempo para atingi-lo, somente um trabalho sinérgico entre as Concessionárias e a cadeia produtiva − incluindo a Engenharia, os processos, os equipamentos, os materiais e a mão de obra − poderá viabilizar o sucesso dessa empreitada.

Para esse fim, as entidades representativas desses segmentos e as entidades das Concessionárias deverão manter um contato permanente de monitoramento, identificando problemas, sugerindo soluções e alternativas para a melhoria do desempenho de ambos os lados. Treinamento e capacitação deverão ser encarados como temas relevantes. O relacionamento comercial entre as partes deve ser objeto de melhoria contínua, no sentido de agregar, para ambas, resultados técnicos e financeiros, com decorrente melhoria de desempenho e benefício para a população.

O Sinaenco, a APECS e a ABCE têm tido a preocupação de manter esse contato com as Concessionárias, inclusive formando grupos de trabalho para temas permanentes de interesse comum.

A Engenharia está vivendo uma transformação de grande vulto com o uso da modelagem BIM nas obras, nas fases de projeto, construção, operação e manutenção. O domínio dessa tecnologia e sua implantação, seja nas Concessionárias, seja na cadeia produtiva, exigirá muita tenacidade na capacitação dos corpos técnicos de todos os agentes envolvidos.

Qualidade na gestão das compras

Embora a responsabilidade de agregar esforços nessa jornada recaia sobre todos, a liderança caberá às Concessionárias, que têm maior responsabilidade pelo sucesso e pelos retornos financeiros. Serão elas as grandes compradoras de serviços, materiais e equipamentos. É de conhecimento geral que o mercado fornecedor é o espelho do mercado comprador. Não existe um mercado fornecedor de qualidade quando o mercado comprador é de baixa qualidade, almejando unicamente o preço mínimo.

O enfrentamento do desafio pelas Concessionárias exigirá a qualidade como ingrediente imprescindível nas tomadas de decisão. Em qualquer empreendimento, a qualidade na gestão das compras é fator essencial de sucesso. E o sucesso não está na compra pelo menor preço, mas no correto balanceamento entre a qualidade requerida e a justa remuneração. Aquele que busca o menor preço como parâmetro de compra obtém, no máximo, o mínimo – quando obtém, pois, muitas vezes o resultado acaba sendo a inviabilidade econômica, que resulta em obra parada e nas vultosas perdas financeiras que essa situação costuma acarretar.

Portanto, é fundamental que as Concessionárias, já de início, procurem estabelecer com os diversos elos da cadeia produtiva um diálogo aberto e construtivo, objetivando obter soluções de parceria para os principais problemas a serem enfrentados por ambos. Assim, ao longo dessa jornada, será possível agregar cada vez mais excelência aos perfis das Concessionárias na prestação de serviço com bons resultados financeiros e, ao mesmo tempo, favorecer que a cadeia produtiva disponibilize materiais novos com novas tecnologias, mão de obra de excelência, engenharia inovadora e atualizada, com soluções de vanguarda agregadas a pesquisas nos institutos tecnológicos.

Somente com a junção de esforços desses dois atores, as Concessionárias e a cadeia produtiva, por meio de um diálogo franco, permeado pela percepção de que um depende do outro, é que se poderá reduzir ao mínimo os riscos de insucesso. Em outras palavras, o sucesso de um deve ter a mesma atenção e esforço do sucesso do outro.

(*) Luciano Afonso Borges é Diretor Técnico e Coordenador do GT Apecs (Associação Paulista de Empresas de Consultoria e Serviços em Saneamento e Meio Ambiente) e Diretor da Maubertec Tecnologia em Engenharia Ltda.


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