Em entrevista exclusiva ao Boletim do Saneamento, o advogado e mestre em Direito Público (FGV/SP) Luiz Felipe Pinto Lima Graziano

Luiz Felipe Pinto Lima Graziano

Luiz Felipe Pinto Lima Graziano

Município deve ficar atento com a prorrogação de contratos de saneamento, alerta advogado (*).

A prorrogação de contratos de saneamento vigentes é admitida pela Lei do Saneamento. Porém, o Novo Marco Legal do Saneamento indica que isso pode ocorrer desde que os preços e condições sejam vantajosos para a Administração.

As companhias estaduais, que estão assumindo diretamente os serviços de água e esgoto das microrregiões, sem licitação e contratos, podem ser questionados no futuro.

Esses são os assuntos detalhados pelo advogado Luiz Felipe Pinto Lima Graziano em entrevista exclusiva para o Boletim do Saneamento. Sócio do escritório Giamundo Neto Advogados, Graziano atua no direito empresarial relacionado à infraestrutura.

Confira abaixo a íntegra da entrevista: 

Boletim do Saneamento – Algumas empresas estaduais estão assumindo diretamente os serviços de água e esgoto das microrregiões, sem licitações e contratos, com o argumento de que os Estados são integrantes dos blocos junto com os municípios. Esses contratos podem ser questionados no futuro?

Luiz Felipe Graziano – Sim, esses contratos podem ser questionados no futuro.

Conforme o art. 10 do Novo Marco do Saneamento Básico (Lei n° 14.026/2020), somente é possível a atuação sem licitação no caso de a entidade integrar a Administração do titular.

Quando não integrar, é proibida a atuação direta, independentemente do nome que se pretender dar a este vínculo (convênio ou contrato de programa, por exemplo).

Em caso discutido no STF (ADI n° 7335/PB), a Paraíba buscou, por meio da Companhia Estadual de Saneamento, prestar os serviços sem licitação em razão da criação de uma entidade integrada por estados e municípios que criaria uma descentralização administrativa, em conformidade com o art. 10 da Lei de Saneamento.

No entanto, o entendimento do STF foi no sentido de que não houve qualquer descentralização administrativa no modelo proposto, mas a atribuição da atividade a uma entidade estranha à entidade regionalizada, sem licitação.

O art. 10 da Lei n° 11.445/2007 não alcança o arranjo descrito, visto que tão somente autoriza o titular do serviço (em regra, o município, nos termos do inciso I do art. 8°) ao atribuir a um ente integrante da sua administração indireta.

Isso significa uma atribuição de atividade dentro da mesma pessoa política, em conformidade com o disposto pelo art. 175 da Constituição.

Em se tratando de um bloco de referência, cria-se uma estrutura administrativa vinculada às pessoas políticas que o integram, não se confundindo com as partes que o integram.

De acordo com o art. 8°, II da Lei de Saneamento, ao Estado é atribuída a titularidade de serviços de saneamento básico no caso de interesse comum, hipótese em que compartilha a titularidade com os municípios.

Assim, o titular não é o estado por si só, mas o estado em conjunto com os municípios, conforme dispôs o STF na ADI n° 1.842/RJ.

Dessa forma, seguindo a lógica do mencionado art. 10, para que incida a exceção à licitação, seria preciso que a estatal fosse organizada e administrada pelos municípios e pelo estado conjuntamente.

O fato de um dos entes que formam o consórcio possuir uma estatal não justifica a violação à regra de licitação, pois esse ente não é, sozinho, o titular do serviço.

Portanto, na hipótese em comento não há atribuição do serviço para ente que integra o titular dos serviços, mas a delegação para um terceiro alheio a essa estrutura, qual seja, a estatal vinculada ao Estado, o que não é permitido pela Lei do Saneamento e pode ser objeto de questionamento.

BS – Como ficou definida a prorrogação de contratos pelas prefeituras? Quais procedimentos jurídicos elas devem adotar?

Luiz Felipe Graziano – De maneira específica, a Lei de Saneamento, em seu art. 11-B, §8°, admite a prorrogação de contratos de saneamento vigentes.

De maneira geral aos contratos administrativos, o art. 57, II da Lei n° 8.666/93 estabelece a possibilidade de prorrogação por iguais e sucessivos períodos, desde que os preços e condições ainda sejam vantajosos para a Administração.

Assim, a adoção de providências para a prorrogação do prazo de vigência do contrato deve se iniciar com a antecedência necessária à formalização de um termo aditivo, antes do término do prazo de vigência do contrato em vigor.

Por iniciativa da prefeitura, pode esta notificar o operador do serviço de saneamento básico, apresentando proposta de prorrogação do contrato, incluindo prazo de prorrogação, condições financeiras e alterações contratuais.

Consequentemente, deve o operador do serviço de saneamento responder à notificação em concordância ou discordância à proposta.

Todo o procedimento deve ser feito perante o órgão municipal competente, que pode ser uma Área Gestora de Contratos, a qual dará início aos procedimentos para a prorrogação dos contratos, levando em conta as informações prestadas pela unidade demandante do serviço e pelo fiscal do contrato, preços de mercado e demais informações que auxiliem na identificação da proposta mais vantajosa para a Administração.

BS – Muitos municípios não conseguiram participar de microrregiões. Como fica a situação dessas cidades a partir de agora?

Luiz Felipe Graziano – As microrregiões foram estabelecidas no Novo Marco do Saneamento como relacionadas a ganhos de eficiência na prestação dos serviços, especialmente por municípios de pequeno porte.

Cada município tem a liberdade de escolher a forma de gestão que considere mais adequada às suas necessidades e capacidades, sendo meramente facultada a instituição de microrregiões nos termos do art. 25, §3° da Constituição Federal.

Assim, a mencionada legislação garante, a priori, maior autonomia aos municípios e permite diferentes arranjos para a prestação dos serviços, como por exemplo, consórcio público, convênio de cooperação, microrregiões, unidades regionais de saneamento básico, blocos de referência e até mesmo a prestação direta dos serviços, cabendo ao município selecionar o arranjo que melhor lhe convém.

No entanto, para a região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, o entendimento do STF, proferido na ADI n° 1.842/RJ, é no sentido de que existe uma compulsoriedade na sua instituição, a qual não é incompatível com a autonomia municipal.

A Constituição Federal conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os estados e o Distrito Federal (art. 18 da CF/1988).

A essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo.

O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.12.1999).

O interesse comum inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supra municipais.

A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal.

Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante o arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal 11.445/2007 e o art. 241 da Constituição Federal, como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas.

A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos. Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal.

Conforme tal entendimento, poderia o município ser compulsoriamente integrado a uma microrregião por meio da edição de uma lei complementar estadual, em razão do interesse comum contido na função pública do saneamento básico. Pode-se entender que não há juízo de oportunidade e conveniência por parte dos municípios para aderir ou não às regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões criadas por lei complementar estadual, haja vista que, criada quaisquer uma dessas unidades Inter federativas, automaticamente a titularidade da prestação do serviço público de saneamento deixa de pertencer aos municípios e migra à nova estrutura criada.

Além disso, para fins de alocação de recursos públicos federais, é obrigatória a estruturação de prestação regionalizada e a adesão pelos titulares, nos termos do art. 50, VII e VIII da Lei n° 11.445/2007, regulamentado pelo Decreto n° 11.599/2023. Dessa forma, a prestação direta, caso desconsidere a regionalização, ficará sem recursos da União, inclusive BNDES, FEP/Caixa e FGTS.

Ressalta-se que, com a publicação do Decreto n° 11.599/2023 em 12 de julho de 2023, foi-se estabelecido um novo prazo para a estruturação da prestação regionalizada; a adesão dos titulares à regionalização; e a constituição da entidade de governança Inter federativa; qual seja, 31 de dezembro de 2025.

No mais, foi definido no art. 7°, IX do decreto que será considerada criada a entidade de governança regional a partir da apresentação de seu regimento interno aprovado, ou de um instrumento equivalente. O decreto manteve o prazo de 180 dias (após lei estadual de criação das unidades regionais ou resolução federal para criação de blocos de referência) para adesão ou não dos municípios e a instituição de fato das novas instâncias de governança.

Em resumo, o Decreto n° 11.599/2023 estendeu o prazo para adesão dos municípios às estruturas regionalizadas, determinando como prazo final o dia 31 de dezembro de 2025. Após 31 de dezembro de 2025, os municípios terão o prazo de 180 dias para aderir às estruturas de regionalização que vierem a ser criadas, as quais podem ser: por gestão associada voluntária entre entes federativos por meio de consórcio público ou convênio de cooperação; de forma compulsória por meio de lei estadual complementar que crie região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, composta pelo agrupamento de municípios limítrofes; pela instituição de unidade regional de saneamento básico, por meio de lei estadual ordinária e constituída pelo agrupamento de municípios não necessariamente limítrofes; e pela instituição de bloco de referência com agrupamento de municípios não necessariamente limítrofes, criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares.

Após tal prazo e na ausência de lei complementar estadual, o município ficará sujeito a uma prestação autônoma dos serviços de saneamento. Ressalta-se, conforme já dito, que neste caso não terá o município acesso às verbas federais e à concessão de empréstimos com recursos da União.

BS – Na sua avaliação, o novo marco legal do saneamento ainda traz pontos capazes de gerar insegurança jurídica para os entes federativos? Se sim, quais?

Luiz Felipe Graziano – De maneira geral, o Novo Marco Legal do Saneamento trouxe um viés essencialmente econômico-financeiro ao ordenamento jurídico, de forma a gerar recursos e promover equilíbrio contratual como meio de suporte ao atendimento das metas de universalização.

Assim, foram instituídos novos institutos como a comprovação da capacidade econômico-financeira, estruturação dos blocos de referência, assim como a possibilidade de edição de normas de referência pela ANA.

No entanto, um ponto de atenção consiste na extinção dos contratos de programa, fato que pode gerar impactos aos entes federativos quanto às indenizações devidas aos prestadores pelos bens reversíveis afetados ao serviço e pelos investimentos não amortizados.

No mais, quanto ao assunto, resta insegurança jurídica e controvérsia quanto à possibilidade de extensão desses contratos de programa para reequilíbrio.

 

(*) Mestre em Direito Público pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), o advogado atuou por 15 anos em departamentos jurídicos de grandes empresas de infraestrutura. Foi vice-presidente da Coordenação de Saneamento Básico do Conselho Federal da OAB (Gestão 2013 / 2016), Coordenador do Comitê Jurídico da ABCON – Associação Brasileira das Concessionárias Privadas dos Serviços Públicos de Água e Esgoto (de janeiro de 2013 até janeiro de 2016), além de Diretor de Relações Institucionais (julho de 2015 / julho de 2017) e membro fundador do IBDEE – Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial. Atualmente é membro da Comissão de Saneamento Básico do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo (nomeado em 08/10/2014).

FAÇA SUA PERGUNTA